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Escultura do artista plástico Flávio Cerqueira usada no ensaio visual, organizado por Sergio Romagnolo, na última edição da revista da Boitempo, a Margem Esquerda #27.

“Se é possível dizer que o marxismo permite uma compreensão científica da questão racial, também se pode afirmar que a análise do fenômeno racial abre as portas para que o marxismo cumpra sua vocação de tornar inteligíveis as relações sociais históricas em suas determinações sociais mais concretas.”

Por Silvio Luiz de Almeida.

Ao contrário do apregoam as leituras liberais, racismo não é apenas um problema ético, uma categoria jurídica ou um dado psicológico. Racismo é uma relação social, que se estrutura política e economicamente.*

Por ser uma relação social – portanto, dotado de materialidade e historicidade –, o fenômeno do racismo não escapou das lentes da teoria marxista. Já nas obras de Marx e Engels, assim como na dos “clássicos” marxistas (Vladimir Lenin, Karl Kautsky, Rosa Luxemburgo e Bruno Bauer), reflexões acerca da relação entre racismo, nacionalismo, colonialismo e a formação da economia capitalista ocupam posição de destaque.

Com efeito, o debate racial no interior do pensamento marxista aprofundou-se à medida que os impactos das grandes transformações sociais do século XX exigiram um reposicionamento teórico. Temas como constituição de subjetividade e ideologiaEstado capitalista e as crises e papel das minorias na luta de classes, bem como os diálogos com a psicanálise, a fenomenologia, o estruturalismo e o pós-estruturalismo, ampliaram as possibilidades de uma análise marxista do racismo.

Assim, diversos foram os pensadores e as pensadoras que trataram do racismo partindo da análise de experiências históricas distintas e de múltiplas interpretações e apropriações dos conceitos presentes na obra de Marx. Muitos desses estudiosos da conexão entre racismo e capitalismo estiveram diretamente envolvidos nas lutas sociais em seus respectivos países. São apenas alguns exemplos, que nem de longe encerram a lista de autores e autoras cuja perspectiva, de algum modo, liga-se ao marxismo: nos Estados Unidos, Oliver C. Cox, Angela Davis e Stokely Carmichael são referências fundamentais na luta dos negros estadunidenses; no continente africano e no contexto da resistência anticolonial, Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah e Frantz Fanon produziram obras de grande influência; sobre a realidade da escravidão e do racismo segundo a perspectiva caribenha, Walter Rodney, C. L. R. James e Eric Williams gestaram obras de relevo; no Brasil, destaca-se a importância de Florestan Fernandes, Guerreiro Ramos e Clóvis Moura.

Se é possível dizer que o marxismo permite uma compreensão científica da questão racial, também se pode afirmar que a análise do fenômeno racial abre as portas para que o marxismo cumpra sua vocação de tornar inteligíveis as relações sociais históricas em suas determinações sociais mais concretas. Os conceitos de classe, Estado, imperialismo, ideologia e acumulação primitiva, superexploração, crise e tantos outros ganham concretude histórica e inteligibilidade quando informados pelas determinações raciais. Nesse sentido, é importante dizer quão essencial o estudo das relações raciais é para a compreensão das especificidades de cada formação social capitalista, especialmente nos países da América, do Caribe, da África e da Ásia.

Com base nessas preocupações, o dossiê “Marxismo e questão racial” da última edição da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, traz quatro artigos que introduzem algumas perspectivas possíveis de um debate ainda inconcluso.

No texto “Estado, racismo e materialismo”, Alessandra Devulsky mostra como o Estado, o direito e racismo são componentes estruturais da reprodução do capitalismo. Em “Dilemas da luta contra o racismo no contexto da ação direta do capital brasileiro contemporâneo”, Dennis de Oliveiratraz-nos o conceito de ação direta do capital, demonstrando como o avanço das políticas neoliberais e o predomínio do capital financeiro estão associados ao extermínio da população negra. Márcio Farias, em “Pensamento social brasileiro e relações raciais no Brasil: a análise marxista de Clóvis Moura”, relembra o legado de Clóvis Moura e suas inovadoras leituras sobre o marxismo, a escravidão e a formação social brasileira. Por fim, Rosane Borges, no texto “Feminismos negros e marxismo: quem deve a quem?”, mostra-nos a relação teórica e prática entre feminismo negro e marxismo.

* Como enfatiza Étienne Balibar, “o racismo é uma relação social, não um simples delírio de sujeitos racistas”. Étienne Balibar e Immanuel Wallerstein, Race, Class and Nation: Ambiguous Identity (Londres, Verso, 2010), p. 41.

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Silvio Luiz de Almeida é natural de São Paulo, capital. Jurista e filósofo, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), é autor, entre outros de Sartre: direito e política: ontologia, liberdade, revolução. Recentemente, coordenou o dossiê especial sobre “Marxismo e a questão racial” na edição #27 da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda. Atualmente Preside o Instituto Luiz Gama, entidade com atuação na área direitos humanos e leciona nas Faculdades de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade São Judas Tadeu. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2016/12/14/marxismo-e-a-questao-racial/