Archives for posts with tag: Negros pelo mundo
“É muito mais fácil e rápido viajar para a Europa do que viajar em África. Nós não nos conhecemos uns aos outros, conhecemo-nos mal, muito mal”

Por ANTÓNIO RODRIGUES (TEXTO), ANA BRÍGIDA (FOTOS)

O artista fala da arte de escrever crónicas, dos Buraka, de moda e da necessidade de contar uma nova história de África.

Três anos depois de ter editado a sua primeira colectânea de contos, intitulada Estórias de Amor para Meninos de Cor, Kalaf Epalanga volta a publicar uma nova colecção de crónicas. Desta vez, o novo livro traz um título ainda mais irónico e junta aos textos escritos para o jornal português Público, os artigos que escreveu para o Rede Angola, onde publica desde o primeiro número deste jornal. Chama-se O Angolano que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço) e, tal como o primeiro, sai com a chancela da Caminho.

Apanhei um texto seu sobre outra pessoa, em que escrevia: “gosto de textos acessíveis mas que sejam corajosos e que nos interrogam, com alguém a assumir sem problemas a sua condição questionando a realidade à sua volta.” Também pensa isso sobre os seus próprios textos?

Absolutamente!

Gosta de ser simples e directo naquilo que escreve?

Eu quando escrevo, penso sempre naquelas pessoas que não têm o gosto da leitura. Esse é o meu objectivo, cativar quem não tem o hábito de comprar livros. Então, na minha escrita, tento sempre simplificá-la, encontrar aquele tom coloquial tendo em conta as regras do formato a adoptar.

Preocupa-se mais em atingir o maior número de pessoas possível do que com a qualidade literária dos seus textos?

Não, não, pelo contrário. Penso sempre quais foram os livros que me cativaram, quais foram os livros que me deram a necessidade de escrever? Muita literatura americana, muita literatura brasileira, Jorge Amado – esses foram os escritores que me emocionaram o suficiente para poder dizer “ok, também quero contar as minhas próprias histórias”. No caso do Jorge Amado, a escrita dele é muito simples não é? Pertence àquela geração que não tinha medo, no rescaldo do Machado de Assis, que promovia a literatura brasileira, a voz brasileira na literatura e as novas linguagens, as novas formas de abordar os temas. Outros escritores que me impressionaram bastante não escrevem histórias complexas – são complexas no sentido humano mas não complexas no sentido do convite à leitura. Escreveram textos que provavelmente um analfabeto, se as ouvisse contar, iria achar cativantes. E na minha escrita também tenho essa preocupação. Se eu vou pegar nesses textos brasileiros para um tio que vive num campo distante do Huambo, como é que essa pessoa irá entender essas histórias? Eu penso muito nisso quando escrevo."Esse é o meu objectivo, cativar quem não tem o hábito de comprar livros"

“Esse é o meu objectivo, cativar quem não tem o hábito de comprar livros”

Também se diz que a simplicidade custa muito, isso quer dizer que trabalha muito o texto?

Quando escrevo poemas para canções, a minha preocupação é ter a palavra ao serviço da melodia e do sentimento que o cantor quer. Ou seja, a palavra deixa de ser importante e é simplesmente aquilo que ela representa ou como nos soa. Aí as minhas preocupações são outras e esse poder de síntese, é uma coisa que nem sempre consigo. É um exercício que tenho vindo a fazer, daí gostar bastante da crónica. Muitas das minhas crónicas, não vou dizer quais são, têm cunhos de ficção. Muita vez, pego num facto e giro à volta dele, construindo uma história que é ficção para discutir e abordar um facto específico do nosso quotidiano ou da nossa história. É muito comum, faço-o muito, até porque quando comecei a escrever textos já sabia que este livro ia ser publicado. Chegava a certos lugares onde tinha uma boa ideia e precisava de uma história… Por exemplo, o “Banho de Caneca”. Eu tinha esse conceito presente mas construí aquela história com várias situações, com muito da minha infância mas também da infância de outras pessoas, de encontro a um sentimento geral e à maneira como nós nos relacionamos com o banho de caneca. Bem, não sei se consegui, tenho de falar com angolanos que tenham essa experiência para saber se cheguei perto dessa imagem. E há outras histórias. Há, por exemplo, a minha relação com a kizomba está muito presente neste livro. Eu conto uma história, passou-se há tanto tempo atrás. De facto, eu trabalhei numa discoteca africana, dancei com uma rapariga que na realidade dançava maravilhosamente bem. Isso são os factos, depois toda a envolvência…

E era loura de Loures? Ou não era?

Era loura. Não sei se era de Loures! Sei que era de um subúrbio qualquer, não sei o subúrbio específico mas isso não é importante, obviamente. Loura de Loures, até pela melodia das palavras, não é? Não interessa de onde é. Podia ser de Chelas, podia ser de Sacavém, mas alguma coisa naquelas palavras Loures, loura, me fascinou naquele momento e coloquei-as.

Ou seja, há coisas que existem e depois preenche…

Preencho os vazios com essas coisas. Às vezes sou fiel ao formato crónica, mas me dou a liberdade de extravasar, de fugir noutras direcções. Muitas vezes o mais importante é a imagem que se cria do que propriamente as palavras que colocaste para chegar àquela imagem.

Tem um método para escrever ou é muito caótico na forma como aborda cada crónica?

Depende. É raro mas aconteceu chegar completamente vazio e no primeiro parágrafo descobrir o texto. Vai-se descrevendo uma conversa e acaba-se por descobrir. Por exemplo, lembro-me de uma história que falava de um encontro com um africano, um antigo colega do liceu, deve ter saído no Rede. Sentou-me no bar, puxou de uma cerveja e começámos a falar muito sobre essa questão, esse encontro existiu, mas eram mais pessoas, reuni um grupo de cinco ou seis pessoas, nenhuma delas foi meu colega de escola mas aquela conversa teve lugar, aquela discussão teve lugar. Se eu cronicasse um debate, nunca mais iria acabar, o facto de ter reunido essas cinco pessoas numa só ajudou-me a chegar mais perto, mais directo do assunto que queria abordar – essa coisa dos agentes culturais, se estamos ou não estamos a fazer a coisa certa…ou a cativar as comunidades envolventes e a opinião pública. Eu discuto muito sobre isso. Sobre o papel que um músico tem na formação de opiniões. Eu sou muito desconfiado, como muitos artistas. Há um factor que afasta o artista da verdade, que é o ego! É um factor muito presente em quase todos os artistas. E, nesse sentido, eu me pergunto se nós artistas, especialmente das artes mais, entre aspas, “nobres”, se estamos a ir de encontro a necessidades da nossa comunidade ou se só estamos a alimentar o nosso próprio ego. Sair da tua redoma, do teu pedestal de artista e te colocares realmente num plano onde fazes a pergunta certa: é ou não é importante estarmos a dar Shakespeare a um público que nunca foi ao teatro ou não está acostumado a ir ao teatro? Quais são, na verdade, as histórias que são importantes contar na nossa comunidade, não é?

Tem medo que aquilo que acha importante, não seja realmente o importante?

Aquilo que seja necessário. Importante é. Skakespeare, Tennessee Williams são importantes. Tudo é importante. É arte, é cultura. É importante. Mas pode não ser necessário. E isso é o que me pergunto muito. É uma preocupação que partilho com os meus pares, partilho com os agentes culturais que dividem o mesmo espaço que eu. A de estar ao serviço de uma ideia que é maior do que nós.

“Não tenho medo do meu ego”

E do seu ego, tem medo?

Não, não tenho medo do meu ego! Sei que o meu ego é útil em algumas circunstâncias e é prejudicial noutras. Para mim, o que é importante é estar consciente, saber exactamente o que é preciso. Têm-me perguntado muito nas entrevistas a propósito do livro, “como é voltar a Angola?” E eu digo, “é muito simples, quando estou em Angola tento ser o mais anónimo possível”. Porque já não vou com tanta frequência, logo, a minha preocupação maior é ouvir. E, depois, se começar a me comportar como artista, a deixar o meu ego dominar as relações inter-pessoais, vou chegar ao ponto em que estarei a entreter e não estarei a absorver. E, para mim, é mais útil a segunda posição. Se me impuser como artista, e não como homem, como ser, como pessoa, irmão, amigo, se não for essa a relação que eu estabeleça com as pessoas, dificilmente consigo chegar a boas histórias, e a sentimentos genuínos.

Precisa dessas histórias e desses sentimentos genuínos, até para alimentar a tua própria arte?

Exacto. Todo o artista precisa disso.

Noto que há uma grande evolução na sua escrita desde o primeiro livro, desde as primeiras crónicas no Público, sente isso não é? Sente que já ganhou mão?

Estou no caminho, estou no processo. Mas, sim, estou muito mais seguro, aprendi algumas coisas. Aprendi, por exemplo, a resumir. Saber juntar só o essencial.

Lembro-me das primeiras crónicas, sentia que havia uma certa ingenuidade na forma como escrevia.

Absolutamente. Tento manter essa ingenuidade, tento não a perder. Tento chegar perto das pessoas que realmente não se interessariam. Isso porquê? Porque me apercebi que as pessoas vinham ter comigo. E ainda acontece muito, vêm ter comigo por causa daquilo que escrevo, e não tanto por causa da música que faço. O facto de me expor daquela forma e de ter esse discurso quase coloquial na minha escrita, faz com que as pessoas sintam liberdade de vir conversar comigo.

Como se estivesse a comunicar com elas directamente.

Exactamente. E isso, para mim, é uma das coisas que mais me fascinam nessa viagem de escrever para os jornais. Na música, as pessoas podem dizer “ah, o gajo dos Buraka Som Sistema escreve sobre isso”. Mas, na escrita, a pessoa vem directamente. Porque a música que eu faço, em última instância, é uma música esquisita.

Agora que está a escrever para dois sítios diferentes, e para dois públicos diferentes, também tem essa preocupação de ter uma escrita diferente para o Rede Angola e para o Público?

Tenho de dividir por assuntos. Há questões universais, há questões sociológicas, há questões económicas que ligam os dois territórios. Eu acho interessante partilhá-las num ambiente mais alargado. Mas há outros assuntos que não. Eu não me sinto cronista, sou um cronista em formação. Sei que vou continuar a me ver como tal, mas para já é um sítio que tenho tido algum prazer em estar. Quando comecei na música e me deparei com o facto de não existirem pessoas com o meu background cultural – e que tivessem vindo do sítio de onde vim – a se interessarem, a operarem,  em circuitos como a música electrónica, o jazz, a cultura popular, desde o rock ao cinema. O facto de ser visto como minoria, de me ver como minoria e ser minoria de facto, de muitas vezes ser o único negro na sala, fez com que abraçasse o sentido da responsabilidade, embora ninguém me tenha obrigado a nada, de trazer um ponto de vista diferente.

Por exemplo, hoje eu acho importante discutir e falar sobre kizomba, sobre o aspecto social da kizomba. Não sou um dançarino brilhante, longe de ser, nem canto bem, nem escrevo para kizomba, mas acho fascinante o aspecto social da kizomba. E como ninguém está hoje a falar sobre esse assunto, eu me coloco essa responsabilidade. Acho importante analisar as coisas e olhar para a Kizomba como um género musical que está a juntar comunidades, a juntar pessoas sem as armadilhas da lusofonia. Porque na Kizomba precisas de dar o abraço a alguém e nesse ponto não há propriamente lugar a discussões políticas. Há uma entrega que é genuína, que é humana. É isso que me atrai na Kizomba. E, depois, está o olhar no contexto global, ver como a comunidade afro-americana é vista no mundo. Como a comunidade tem vindo a crescer, não só politicamente, também economicamente. E, depois, posto em contexto com a nossa realidade, a nossa realidade na Europa. Eu encontro muitos actores europeus, pessoas nas mesmas circunstâncias que nós, ou que emigraram, ou que nasceram num outro país europeu – para muita gente, a ideia de regressar a África está presente; e há um bom número de pessoas que não está preocupada com esse assunto, que quer construir uma identidade. É europeia negra, aqui. Acho isso fascinante.

Estabeleceu para si que, como cronista, fala de determinados temas.

Exacto. Sem dúvida. E isso veio por experiência. Podia estar a comentar todas as notícias que saem no jornal. Estava a andar de táxi e ouvi o discurso do [Ricardo] Salgado. Havia ali assuntos que acho interessantes, podia estar a abordá-los, mas acho que há cronistas que o fazem muito melhor do que eu. E o contrário não acontece, não é? Não há tantos cronistas a conseguir falar de Angola. O facto de eu, pelas circunstâncias em que me encontro, circular e trabalhar sobre um género musical que deriva da kizomba, o kuduro, coloca-me numa posição privilegiada. Eu estou em contacto directo, conheço quais são os intervenientes desse género. Essa realidade é-me próxima, bastante próxima.“Eu não me sinto cronista, sou um cronista em formação”

“Eu não me sinto cronista, sou um cronista em formação”

A possibilidade de escrever para o Rede Angola pode ser uma oportunidade de ter uma voz em Angola também?

Eu vejo mais ao contrário. Eu acho que escrever para o Rede é uma oportunidade de o Rede expor uma voz angolana no mundo. Ok, o Rede é muito consumido em Angola, mas a minha preocupação maior é ao contrário, quando o Rede começar a ser uma voz de angolanos a analisar a sociedade americana, por exemplo, da forma como as nossas políticas e democracias estão a evoluir em África! Começar a analisar um aspecto interessante, o facto de, pela primeira vez na nossa História – até foi o Agualusa que me levantou essa questão -, todos os países de expressão portuguesa incluindo Timor estarem em paz. Não há nenhum conflito, há questões sociais por resolver, mas não há um conflito armado neste momento. E isso é novo. O que é que isso representa para o mundo, essa estabilidade social? A nossa história, a história dos negros, é toda ela construída em retalhos, baseada na oralidade, logo não temos tantos documentos para sustentar o nosso pensamento. Temos de recorrer ao pensamento europeu, ao pensamento ocidental para construir a nossa própria história. E ao fazer isso, temos de filtrar algumas coisas, temos de desconfiar daqueles documentos, a verdade que está presente naqueles documentos, e cabe a nós todos em África, e à sua diáspora espalhada pelo mundo, resgatar esses momentos para tentar reconstruir o mais fiel possível aquilo que foi a nossa presença no Ocidente, a nossa presença no Novo Mundo.

Uma das importâncias dessa história fragmentada, e a consequência disso, é o que estamos a ver nas ruas dos Estados Unidos. O Movimento do Direitos Cívicos como o W.E.B. Du Bois, Marcus Garvey, Martin Luther King e outros, todos esses pensadores e essas personalidades da História americana, trabalharam bastante para constituir e devolver a dignidade àquela comunidade, mas chegam a um ponto que o discurso deles pára. Não há mais. E a partir daquele ponto, o resto é desgraça, miséria, é crime, não é?

Olhando a História como nos é contada, há uma divisão muito clara entre vencedores e vencidos. E os vencidos têm de se subjugar e aceitar as leis do vencedor. É isso a forma como eu interpreto as tensões raciais nos EUA. O vencido tem de aceitar que é assim que as coisas têm de ser. E eu acho que saímos todos a perder, somos todos perdedores. A partir do momento em que um homem escraviza, subjuga, outro homem ou outro ser aos seus ideais, aos seus conceitos morais, não há nada mais violento, estão a eliminar toda a dignidade da outra pessoa.

Os perigos de não confrontar essas realidades, de não exigirmos de nós próprios uma abordagem um pouquinho mais acutilante e clara sobre qual foi o nosso papel na história da formação do mundo, o que representou realmente os Descobrimentos, o que é que foi realmente o nosso contributo, o facto de não existir um discurso um pouco mais humanizado, um pouco mais generoso em relação a esse aspecto da nossa história é que nos condiciona enquanto seres humanos.

Em que aspecto é que, por exemplo, a questão das reparações da escravatura seriam importantes…

Não acho que seria praticável. Poderíamos tentar, mas não iríamos construir nada de muito positivo. Agora, o que eu acho que era importante era revermos os nossos manuais escolares, por exemplo. Era rever a nossa história. Isso acho importante. Como o exemplo alemão em relação ao Holocausto dos judeus. O investimento que eles fazem em educação é extraordinário. E nós não fizemos, não investimos da mesma forma em educar, em mostrar realmente o quão mau é escravizar outra pessoa. Há bastante matéria editada sobre esse assunto, mas, no Ensino Secundário, no ponto mais importante da formação do indivíduo que é a adolescência, não há argumentos suficientes para equilibrar a balança. E, como é hábito, se não começas a criar desde a base, senão começas a apontar os erros e os crimes que se cometeram, o que vai acontecer é que vais ter pessoas formadas com os mesmos estigmas herdados das gerações anteriores. Já não vais conseguir olhar para África, não vais conseguir olhar para os negros com um olhar mais humanizado."Eu acho que há um pensamento africano, uma filosofia, só que ela não é promovida, não é levada em conta"

“Eu acho que há um pensamento africano, uma filosofia, só que ela não é promovida, não é levada em conta”

Desde que chegou em 1995, notou uma evolução na sociedade portuguesa em relação a isso?

Eu acho que há um pensamento africano, uma filosofia, só que ela não é promovida, não é levada em conta. De certa forma, se reparar, a relação entre negros e brancos, em Portugal, começa realmente a ser mais equilibrada, a partir da segunda metade dos anos 1990, a partir do momento em que os jovens da segunda geração, ou os recém-chegados, começaram a olhar para si noutra perspectiva. E não posso anular a influência americana nessa mudança de pensamento, de mudança de comportamento. A América negra devolveu dignidade aos negros, principalmente aos negros na Europa. Sem sombra de dúvida. O que tenho vindo a observar é a forma como essa nova economia africana, o modo como ela começa a surgir no ocidente. Angolanos, nigerianos, como é que eles começam a vir para o Ocidente e a atitude com que vêem o Ocidente vai mudar a forma como o negro na Europa e nas suas diásporas se vai comportar. Quando os Nkrumah e os Lumumbas e outros começaram a ir para as Nações Unidas, os negros americanos começaram a olhar para África de outra maneira. Antes disso havia uma cisão, um distanciamento tremendo ente os afro-americanos e os africanos no continente. Da mesma forma, por arrasto, na Europa foi só nos anos 1960, 1970, que essa visão começou a mudar. É muito recente. Começámos a ver nações a erguer-se, a procurarem soluções de emancipação e de independência. E isso influencia as pessoas. Houve pessoas que pegaram nas suas malas e foram lutar, juntaram-se ao MPLA para lutar pela libertação, muitas delas brancas.

Jovens nações a tentar construir-se?

A tentar construir-se. E a primeira coisa que vai acontecer é que essas nações vão olhar para o imediato. Não vamos esquecer que muito desse período foi passado com guerras civis, com a Guerra Fria que condicionou bastante o continente africano. Foram os impérios, as guerras civis, a guerra fria e depois a subdivisão entre russos e americanos. Só muito recentemente é que nos livrámos dessas amarras, mas ainda não nos livrámos totalmente, as sombras que ainda estão presentes. Se pensarmos e analisarmos as coisas de forma prática, o pensamento africano, essa inteligência africana ainda está em formação. O posicionamento intelectual africano ainda está em formação, muito recente – somos muito jovens não é?

Estão a dar os primeiros passos…

A dar os primeiros passos… O direito ao voto é muito recente, as democracias efectivas em África são coisa recente, tão recente que até as que funcionam bem não têm ainda essa habituação necessária para começar a olhar para as outras nações e dizer «estamos a criar estabilidade africana, de norte a sul, precisamos que haja realmente uma União Africana, efectiva”. Os nossos líderes vão ter que lidar com os problemas de uma maneira um pouquinho mais consistente e objectiva, as epidemias que existem, as crises de energia, a educação. A partir do momento que aquele continente se torna estável, há uma circulação da informação, há uma troca de informação que nunca existiu. Conto pelas mãos os países africanos que conheço. Conheço mais a Europa e a América do que a África. É muito mais fácil e rápido viajar para a Europa do que viajar em África. Nós não nos conhecemos uns aos outros, conhecemo-nos mal, muito mal. Curiosamente, existia uma possibilidade maior na época das lutas de libertação, por uma causa comum contra um inimigo comum. Precisamos de voltar a encontrar uma plataforma comum para reconhecer que não estamos longe e qual é o pensamento africano e qual é o nosso papel no mundo. Que valores vamos promover?

Via-se hoje a ter um papel activo em Angola? A viver lá?

Não estou a ver o meu papel. (risos) Eu só tenho de escrever. Escrever é o meu propósito maior.

Veio para Lisboa estudar com intenção de voltar para Angola, em que momento é decidiu que não ia regressar?

A ideia de regressar está sempre presente. Mas a partir do momento em que me tornei músico profissional e assumi responsabilidades – quando olhamos para um músico e o vemos num palco é apenas um, ou dois ou cinco, mas não, atrás há estruturas que estão montadas e famílias que são alimentadas por essas estruturas, só no caso do Buraka são para aí, directamente, 18 pessoas. Logo, se tens uma responsabilidade como músico de uma certa ordem, não consegues desligar a ficha e dizer “ah, ok, meus senhores, foi muito giro mas vou para o meu país!” Ou “vou mudar de cidade”.

Reparei no documentário Off the Beaten Track que não tem passaporte português…

Não, já tenho.

Já tem passaporte português…

Sim, porque estou aqui há anos suficientes. (Risos.)

Pois, a questão era exactamente essa. Está cá há anos suficientes para o ter, não percebi porque é que não o tinha já!

Não havia nenhuma razão especial. Só tinha de estar aqui aquele número suficiente de anos como residente. Questões burocráticas, nomeadamente, como pagar impostos. Depois, eram os assentos de nascimento e coisas do género, reconhecimentos, tens de ir a Angola, reconhecer no ministério dos Negócios Estrangeiros, notários. Toda essa operação leva algum tempo e isso estava exactamente a acontecer no momento do pico da minha actividade como músico. Foi pacífico uma vez reunidos todos os documentos.

 “Sou um benguelense lisboeta” 

Hoje sente-se mais lisboeta que benguelense?

Sinto-me bastante lisboeta porque gosto de ser lisboeta porque aqui sou confrontado com todas as Áfricas que falam português. Porque aqui estou próximo do Brasil. A localização geográfica de Lisboa é muito especial, muito única. E gosto de conhecer esse território, de estar neste território exactamente por sentir que a partir de Benguela não estaria tão perto dos cabo-verdianos, dos moçambicanos, que não sendo muito numerosos dá para manter uma relação de substância muito próxima com a comunidade. Com os guineenses, eu admiro muito os guineenses, porque acho que temos de aprender com os guineenses – são contadores de histórias natos. Não perdemos muito tempo a ouvi-los mas eles têm histórias incríveis, uma experiência, uma vivência muito rica. Eu não teria essa sorte estando em Benguela. Agora, eu sou benguelense lisboeta. Sou um benguelense em Lisboa.

O que há em si de Benguela?

Há, para já, a calma e a paciência. Não tenho urgência. Por exemplo, uma coisa que contrasta com os luandenses. Mais calmos que os benguelenses só, talvez, os do Huambo.

A determinada altura neste livro diz que é um órfão cultural. Sente isso? Eu via-o mais como um filho de todas as culturas do que como um órfão cultural.

Quando digo órfão cultural, referia-me essencialmente…

Àquela ideia de que não está em Angola a receber as coisas da cultura angolana directamente?

Sim, a ideia da diáspora. A ideia dessa história fragmentada, a história africana fragmentada, ou seja, vamos muitas vezes, como muitos órfãos, atrás de qualquer pedaço, qualquer retalho, qualquer vestígio da nossa origem. Atiras-te a ela com uma ferocidade diferente de quem tem isso presente."Estou a tentar ao máximo recolher, restituir, estabelecer o percurso que percorremos, saber qual foi o meu, o nosso, contributo no mundo"

“Estou a tentar ao máximo recolher, restituir, estabelecer o percurso que percorremos, saber qual foi o meu, o nosso, contributo no mundo”

E sente isso quando volta a Angola?

Não, eu sinto isso no mundo. Estou a tentar ao máximo recolher, restituir, estabelecer o percurso que percorremos, saber qual foi o meu, o nosso, contributo no mundo. Somos tão pobres, coitados, assim que o nosso contributo no mundo foi tão desnecessário que o único valor que tínhamos era plantar cana-de-açúcar e recolher algodão? Não é? Eu me pergunto sobre isso. Se não é só isso, então vou atrás de mais, vou em busca…

Por exemplo, na escrita das crónicas, se calhar mais para o Rede, essa necessidade do linguajar coloquial e de utilizar as palavras do jargão normal de quem vive em Angola. Quando volta tenta absorver as novas palavras?

Não, não precisas disso. Basta estarem dois angolanos, para veres a forma como nós construímos as frases. Uma forma particular, que é nossa. Basta estarem dois angolanos para “entrares”. Não precisa de mais. Basta mudares a cassete.

Embora não viva em Angola, a sua voz está lá?

Sim, mas não me sinto menos angolano por viver fora de Angola. Longe disso. Sempre que preciso ou sempre que sinto saudades meto-me no avião e vou para lá. Tenho a sorte de poder fazer isso. Só não vou mais porque não tenho tempo. (Risos.) Não consigo. Tenho toda a liberdade do mundo mas, de facto, preciso de estar todas as semanas num país diferente. A minha vida é assim.

Quando falava na sua voz lá, falava literalmente. Tem feito muitos anúncios para Angola e tem colocado voz para…

Mas é no sentido anónimo.

E continua a fazer muitos ainda?

Não, não dá tempo. Quando estou em Lisboa e me perguntam se tenho tempo, vou. Mas, por exemplo, não vou a castings. Não faço esse tipo de coisas. Se vêm é porque ouviram ou viram alguma coisa que se adequa ao produto que eles querem. Mas é profundamente anónimo, se estivesse a ser pago seria por outra tabela.

Como é que consegue conciliar uma agenda tão carregada de coisas diferentes? Ou quer mesmo que essa agenda seja carregada?

Não. Adorava poder parar e só me dedicar à escrita… Mas interessa-me o que ainda não foi feito. A música começou com a ideia de trazer aquilo que ainda não tinha sido feito. Trazer aquilo que se fazia no Mussulo, em Luanda, no Kudissanga, na linha de Sintra, em Santo António dos Cavaleiros, na linha de Cascais. O que se passava na comunidade africana na Amadora, o que é muito importante nessa equação. Isso não estava presente no Lux, ou quando ia ao Sudoeste; não estava presente no Coliseu, não estava presente para a comunidade de música electrónica. No techno, não estava presente. Essa presença não estava onde eu circulava em 1998, essa música não estava lá. Já estava em Lisboa, há muito tempo até, mas não estava lá. Em 2004, não estava lá! A partir do momento em que comecei a viajar e comecei a ir para Londres e comecei a ver o papel, a maneira como a comunidade afro-caribenha ou africana estava presente no Fabric, estava presente no Minister Sound, estava presente em Notting Hill e em todas as esferas culturais da cidade, eu me perguntei: “Por que não está isto presente em Lisboa também?” Não é que não havia presença de África, havia de facto, mas não em todas as esferas. Ainda hoje não temos uma presença substancial na televisão…

Sim, é verdade…

Olhando para a música como eu a vejo, não vejo géneros, vejo combinações, vejo possibilidades e, nesse sentido, encontrei os cúmplices necessários e o resultado está aqui. Hoje já é mais plural, está diferente.

Vi no documentário uma coisa interessante, acho que era o Branko a falar, em que ele dizia que, embora não tendo estado na génese dos Buraka, foi fundamental na concepção do grupo. Ou seja, na ideia…

Eu não fazia beats, não faço. Eu não sou um músico de mão-cheia, eu trabalho com música. Os Buraka, na sua génese, são beatmakers. Pegam num computador e constroem uma canção. O Buraka é muito conceptual, nós conceptualizamos muito, conversamos, debatemos. Porque é que vamos naquela direcção e não nesta? Ir para aquela direcção é importante? O que é que queremos dizer? E, nesse exercício, eu estou desde o dia 1. Eu fazia parte da comitiva que foi à Praça de Espanha pegar em pilhas e pilhas de discos de kuduro e parou para ouvir aquilo tudo. De ponta a ponta. Estava no dia 1, nas primeiras noites do Mercado. Foi curioso, tínhamos essas canções e tocámos no Lux (em Lisboa) e na Casa da Música (no Porto). Tocámos aquelas canções, não eram muitas. Tocámos e havia realmente alguma coisa que mudou nas pessoas quando ouviram aquilo. Era a primeira vez que vi aquele tipo de música a ser tocada no Lux e no dia seguinte na Casa da Música. Música que realmente vinha dos subúrbios de Luanda via Lisboa. E a partir do momento que tocámos aquilo, veio aquela ideia de familiaridade, quando alguém sabe o que aquilo é mas nunca foi confrontado com tal.

E desde o princípio que os Buraka são pensados para fora?

O diálogo que começámos a estabelecer era com músicos brasileiros, para fazer a mesma coisa que nós noutro contexto. Em Inglaterra, Brasil e América. Não é à toa que é a equação desde o início. O diálogo a estabelecer era com essas pessoas. Não estávamos a fazer música para tocar em Luanda ou ser aceites pela comunidade de África. Nós estávamos a fazer música que gostávamos e precisava de ser dialogada num plano global. Para bem e para mal. Há coisas que se perderam nesse processo mas para nós…

“Tento fazer música para arrancar emoções às pessoas”

É curioso que Buraka é uma música muito instintiva, música muito directa também, ao mesmo tempo é uma música muito pensada…

É música de dança, não é ciência. Nem há ciência nisso. As pessoas dançam ou não dançam.

Sim…

Se as pessoas não dançam é porque não é boa. Ponto. Não há ciência. Qualquer pessoa do Top 10 – os gurus da música de dança – faz música para pôr as pessoas a dançar. Cada um faz aquilo que sabe. Eu não vou fazer canções como um alemão porque não cresci com Kraftwerk. Conheci bastante Kraftwerk na minha idade adulta, não cresci com Kraftwerk. Não cresci, não conheço! E muitos dos produtores com quem trabalhamos nunca ouviu Kraftwerk! Nunca. Zero. Tento fazer música para arrancar emoções às pessoas. Tento não glorificar demasiado, não nos acho especiais a esse ponto. A nossa magia, o que é fantástico no nosso processo, é o facto de nós, desde muito cedo, dialogarmos com as várias correntes musicais. De encontrar os pontos de contacto onde as coisas, onde os mundos, realmente se tocam. Em última instância é irrelevante estares a fazer kuduro, ou baile funk ou kizomba. Os géneros existem, são interessantes, mas não tentamos ser de um género ou de outro.

Podem usar tudo?

Não é bem usar. É como o DJ. O DJ tem a música x no prato 1 e a música y no prato 2. E vai tocar essa canção. E depois tem um crossfade. Esse crossfade à esquerda toca o prato 1 e à direita toca o prato 2, no meio tocam os dois ao mesmo tempo. Ou seja, aquele momento, aquela união, aqueles dois mundos é o que nos interessa. Não vamos usar tudo, o que nos interessa é que as coisas quando unidas façam sentido. Para a nossa busca para a nossa procura interessam pontos de contacto. Eu já não sei quem é que influenciou quem. Eu sei que a música afro-cubana de descendentes de escravos mudou para sempre a música moderna angolana. O semba, como nós o conhecemos, a música zairense como nós a conhecemos, teve uma influência directa da música afro-cubana ou afro-latina. Os discos viajavam; eu tenho amigos na Colômbia que me apresentam músicas de artistas angolanos de quem eu nunca ouvi falar. E tenho uma colecção bastante extensa de música angolana. Músicos que desapareceram para sempre. Onde é que esse jovem gravou? E como gravou? Não faço ideia, o que sei é que as coisas viajavam. Quem é fez isso? Como? É o que me interessa nas literaturas coloniais. Eu fui lá, eu vi! Colômbia é África. Há bairros totalmente negros. Aquela coisa da televisão, com as misses universo e as concorrentes colombianas todas loiras e com feições europeias, dá-nos uma ideia totalmente diferente do país. Tal como o Brasil, quando lá vamos, é totalmente diferente.

É estranho que alguém que esteja tão próximo da palavra, esteja num grupo onde a palavra está subalternizada, como os Buraka.

Não está, pelo contrário.

São palavras escolhidas pelo ritmo, mais do que pelo significado…

É um aspecto da linguagem. Um dia hei-de fazer um trabalho poético sobre os Buraka. Não é automático, garanto.

Não é nada automático, aliás…

O meu processo de escrita é muito engraçado.

O “Carnaval de Luanda”, aliás, acho que é um exemplo bom disso, ou seja, nada daquilo é automático. E uma pessoa se conhecer um pouco da história percebe…

Sim, claro, concordo consigo. Não se pode estar a forçar. O nosso processo de escrita é o seguinte. Sem dúvida, somos escravos do ritmo, das percussões, e isso é bom. É bom impor-se limites e tudo o que tens de fazer tem de caber naquele ponto. E, garanto, que se não for o sentimento, se não está na cara a emoção no primeiro minuto, podia ser a palavra mais brilhante para aquele poema ou aquela letra que não entra. Uma coisa maravilhosa é inventar palavras, criar palavras, ir quase de encontro à essência da comunicação, quase como quando éramos crianças. Põe uma criança chinesa e uma criança africana, não podiam ser mais diferentes, como é que conseguem brincar juntas? Como conseguem comunicar? Quais são os pontos de contacto? Com a língua? Oiço suecos a gritar “candongueiro” e não sabem o que é que significa. Mas tentam aproximar-se ao máximo da palavra “candongueiro”. Logo, quando escrevemos, temos de dar sentido a algo de maneira que provoque e crie uma imagem num ouvinte, e que seja pronunciada de acordo com a ideia e a imagem. É das coisas mais difíceis com que já me deparei, escrever canções. É mesmo difícil.

A procura será pela palavra-essência…

Palavra transversal, independentemente da língua e das referências culturais. Transversal. E quando não encontramos, inventamos. E criamos novas. A transversalidade é uma coisa que não está presa aos códigos da língua portuguesa ou da língua inglesa. Vamos pela fonética, vamos pelo ritmo. Só que com o barulho das luzes parece muito simplista mas não é. Exige trabalho, dá trabalho, demora mas tem de ser. Tem de estar mais perto da essência. As crianças adoram Buraka. É quase como esses pintores que pintavam maravilhosamente bem e depois começaram a desconstruir e a pintar como crianças, porque é ir à essência. É dar coisas que provocam emoções.

E as palavras dos Buraka são isso?

É isso. Se no teu ouvido está certo, então está certo. Mas se existe uma forma Buraka é quando as coisas entram na caixa exacta! Em frente de uma plateia de 50 mil pessoas aquilo tem de estar ali, encaixa e está certo e liberta! Às vezes conseguimos, outras vezes não conseguimos.

“O meu papel essencial é acender a faísca que vai alimentar a fogueira”

O site da agência Voz tem um texto bem interessante que diz…

Não sei o que diz, nunca li.

Diz, por exemplo, «se um dia nos depararmos com qualquer tipo de revolução cultural lusófona, Kalaf Ângelo poderá muito bem ser o seu rosto, voz e atitude». Parece-lhe?

A sério, nunca li isso… (Risos.)

Acha que podia ser? Já está no meio de uma revolução cultural…

Sim, eu sei. Eu sei o que estou a fazer, não estou a andar ao acaso. Sei o que me motiva e quais são os meus princípios e as minhas preocupações. Se eu sou o rosto dessa revolução? Eu acho que não, eu acho que está para vir. Os verdadeiros revolucionários estão para vir. O meu papel essencial é acender a faísca que vai alimentar a fogueira.

Mas que revolução seria essa?

Para começar, precisamos encontrar uma base comum e essa base precisa de ser tanto no plano cultural, como no plano político e no social-económico. Voltando atrás na conversa – educação. A partir do momento que uma história que é comum é contada sob três, quatro versões diferentes, então nós seremos obrigados a saber essas três ou quatro versões. Ou, então, encontra-se uma versão comum. E é aí exactamente que eu estou a trabalhar. Não podemos dar a contar a história da humanidade sob pontos de vista tão distantes e sujeita a agendas multi-cívicas, agendas que excluem o outro. Se continuarmos a achar que esse é o caminho a seguir, acho que estamos errados. Particularmente, acho que estamos a caminhar para o abismo, onde não há mais valores que nos sustentam como sociedade. Para mim é o ponto mais importante e vou fazer com aquilo que sei, escrevendo, dizendo, aquilo que acho que está ao meu alcance. Mas há outros actores que têm de ser chamados para esse palco.

E a poesia, ainda consegue…

Sim. Tenho e vou fazendo uns versos. Vou escrevendo mas agora estou em diálogo com artistas plásticos. Este livro fez-me reaproximar deles, ouvi-los, como é o caso do Miguel Januário e outras pessoas que admiro muito e que usam muito a poesia nos seus trabalhos.

E há por aí trabalhos que estão a ser desenvolvidos?

Sim, alguns. É o que eu digo, eu escrevo muito por conversas, preciso de conversas e gosto de conversar com pessoas sobre outras questões, outras formas de ver o mundo.

A culpada do gosto pela moda é a mãe

Há outra coisa que fala aqui no livro, uma das crónicas chama-se exactamente assim: “Eu amo a moda”. Essa relação com a moda começou muito cedo? Quando é que começou a gostar desse universo?

A minha mãe é a grande culpada disso! (Risos.) Não é o que está a pensar!

Pois não! (Risos.)

Eu tenho um irmão dois anos mais velho do que eu. Dois anos não é quase nada, especialmente, os rapazes, em certa idade, são muito parecidos. A minha mãe, sei lá, por preguiça, por questões económicas, tinha tendência de comprar coisas iguais para os dois. (Risos.)

Eu não sou génio mas não tenho vontade, desejo de me parecer com o colega do lado. Quando não conseguia defender as minhas posições, eu preferia cortar, estragar, pintar, o diabo a quatro, só para me distanciar da roupa do meu irmão. Andei a ler tanto que, hoje, ao trabalhar sobre a ideia de querer parecer diferente, até vou ao encontro da ideia do uniforme. A ideia do uniforme é uma maneira de fazer com que o vestuário não transmita nada mais nada menos do que o necessário. Essa economia de informação, essa coisa de adoptar o fato e a gravata, respeita esse princípio, não é? O adoptar certas peças clássicas, como o casaco de cabedal – é uma referência histórica e eu, ao adoptá-lo, entro nessa história, faço parte dessa história.

A sua ideia do uniforme é de que a outra pessoa saiba logo quem é quando olha para si?

Não, não, não. Eu gosto de trabalhar sobre cânones, gosto quando algo é familiar, para depois…

Para depois subverter…

Para subverter essa ideia. Mas, a verdade, é que gosto quando as coisas têm uma base comum de trabalho, de acção, comunicação e, depois, podemos começar a acrescentar. O gosto dessa base comum é o vestuário. E a moda para mim representa essa base comum. Representa esse primeiro passo. Provavelmente deve ter reparado na minha gravata, meias e um ou outro acessório. Trabalho sobre essa ideia de uma linha contínua. E podes oscilar, pelo menos agora, gosto dessa minha aproximação à moda nesse ponto. Passar de adolescente para a idade adulta, olhar a moda como forma de extravasar para chegar ao ponto de unificar, de harmonizar, de encontrar uma base de entendimento comum. E depois colocar a personalidade dentro dessa base comum, aí vamos dar ao que realmente interessa. Em segundo plano, é a relação com a moda, que é o facto de eu gostar de design e da história do design. Gosto tremendamente das pessoas que fazem coisas com as mãos, que saibam executar e fazer uma peça, desde os pedreiros, padeiros, cozinheiros, alfaiates, etc, etc.

E gasta muito tempo a escolher a roupa, a comprar a roupa?

Não…

Não?

Não, por causa da ideia dos uniformes, eu compro cada vez menos e só compro as mesmas coisas.

Tem as suas marcas preferidas?

É uma questão de silhueta, como toda a gente. Sei que há certos cortes em que uns quilos a mais, uns quilos a menos não me afectam. O que interessa é a forma como a roupa me assenta, logo opto pela camisa e fato que têm um corte que acho de acordo com a minha estrutura.

Agora também tem uma marca própria (Rest of the World)?

Sim, tenho, estou a construir…

Qual é a ideia? Ainda tem poucas coisas e está ligada aos Buraka também…

É uma extensão, uma extensão daquilo que fazemos. Por conhecer, por estar familiarizado com essa coisa – tenho muitos amigos designers e estou muito próximo dessa forma trabalhar -, tenho vindo a achar que é importante, que é o caminho a seguir. Mas não sabemos como é que vamos continuar a consumir música… mas sei que o vestuário continua presente nos nossos hábitos, mais do que nunca. Não estou a inventar nada, estou a aprender.

Mas qual é o caminho que quer percorrer com a marca?

Sinto que dei o primeiro passo, que era importante. Pôr o nome na rua. Mas é um processo que vai demorar, é fazer colecções…

Homem, mulher, criança?

Homem, mulher, criança se for necessário.

E desenhadas por si?

Em equipa, tudo é em equipa. Trabalhamos sempre em equipa – na música, no resto. A escrita é o meu único acto solitário, depois tenho os meus editores, é uma relação com um grupo de pessoas que me ajudam, para já a arranjar soluções para os textos, a criar e a colocarem-me perguntas e que me ajudam a encontrar outras soluções para os textos. Por isso, digo, todo o homem vale pela equipa que tem. Sou sempre apologista desse princípio.

É um bom princípio para acabar.

Então terminamos aqui.

Extraído de: http://m.redeangola.info/especiais/kalaf-epalanga/

kalaf

Naturalidade:

Benguela, Angola

Data de nascimento:

Fevereiro de 1978

Primeiro livro publicado:

Estórias de Amor para Meninos de Cor (2011)

Kalaf Epalanga Alfredo Ângelo nasce – e passa a maior parte da infância e juventude – na cidade de Benguela, em Angola, no seio de uma família de funcionários públicos. Muda-se, contudo, para Lisboa aos 17 anos, com a intenção de se inscrever num curso de Gestão e regressar ao país natal. A ideia não se concretiza: os ares de Lisboa fazem-no mudar de ideias e acaba por nem se inscrever na faculdade. Em vez disso, deixa-se apaixonar pelo mundo da arte e particularmente pelo da música. Começa por se juntar a alguns projetos na área do jazz. Mais tarde, há de completar também dois álbuns de spoken word. No entanto, é em 2002, depois de cofundar a editora independente Enchufada e a banda de kuduro eletrónico Buraka Som Sistema, que se torna conhecido do grande público.

Ao mesmo tempo que os Buraka Som Sistema vão ganhando popularidade, tanto em Portugal como no estrangeiro, Kalaf vai abraçando outras áreas artísticas, nomeadamente a escrita. Em 2011, assinando como Kalaf Ângelo, publica o primeiro livro, Estórias de Amor para Meninos de Cor, uma coleção de crónicas anteriormente editadas no jornal Público que é posteriormente escolhida para integrar o Plano Nacional de Leitura como Livro Recomendado para a Formação de Adultos. Três anos depois, adotando o nome Kalaf Epalanga, lança um segundo livro de crónicas, O Angolano Que Comprou Lisboa (Por Metade do Preço). Desdobrando-se em projetos nas mais diversas áreas, mantém a música e a escrita como prioridades e anuncia para breve a estreia como romancista.

Donyale Luna e Salvador Dali, que dela dizia ser a reencarnação de Nefertiti

Muito antes de Beyoncé e Rihanna se tornarem garotas de capa, e antes de Naomi Sims, Beverly Johnson, Grace Jones, Imam ou Naomi Campbell desfilarem para as marcas mais internacionais, havia uma mulher que marcou a história das modelos negras na indústria da moda, Donyale Luna.

Embora já existissem modelos negras, como Dorothy Towles, a primeira modelo a andar em Paris pela Christian Dior, Donyale Luna foi a primeira a obter o status de “Supermodelo” e o apelido “reencarnação de Nefertiti” quando ele se tornou o primeiro negro. modelo na capa de uma revista de moda, Vogue Briton (1966). Luna ajudou a abrir o caminho para a aceitação e celebração da beleza negra no mundo da moda.

Nascida Peggy Ann Freeman, ela foi descoberta em sua cidade natal de Detroit pelo fotógrafo David McCabe, conhecido por fotografar figuras como Twiggy e Andy Warhol. Ele afirma em uma entrevista à New York Magazine no dia em que a conheceu: “Essa linda garota de quase 1,80 metro de altura, com cerca de 14 anos na época, vestida com seu uniforme católico chamou minha atenção”. Depois de se encontrar com McCabe, ela se mudou para Nova York para iniciar sua carreira. Lá, Luna se envolveu com personagens como o já conhecido Andy Warhol, Sammy David Jr ou quilômetros de Davis. Ela também conheceu a então editora do Harper’s Bazaar, Nancy White, e estrelou a primeira capa ilustrada por uma modelo negra em 1965, assinando um contrato exclusivo com o notável fotógrafo Richard Avedon.

No entanto, Luna não foi acolhida com um abraço caloroso por todos. Muitos pontos de venda e clientes retiraram suas assinaturas quando viram a primeira capa do modelo. Avedon o atribuiu ao “preconceito racial e à economia do negócio da moda”, mas nunca mais a fotografou.

Donyale-luna-screen-test - Flashbak

Logo depois, Luna se mudou para a Europa, especificamente para Londres, onde obteve grande sucesso. Logo foi fotografada por David Bailey, William Klein, Helmut Newton e William Claxton. Foi Claxton quem o apresentou ao artista surrealista Salvador Dalí, que por sua vez a declarou “a reencarnação de Nefertiti”. Ela fez história novamente em março de 1966, quando se tornou a primeira modelo negra a aparecer na capa da Vogue britânica. uma composição elegante, influenciada por Picasso e fotografada por David Bailey, na qual um dos olhos de Luna espreita sugestivamente entre os dedos. Nesse mesmo ano, a fotógrafa Charlotte March criou sua própria versão da pose de Luna para uma revista de moda alemã,Twen. Donyale Luna With Earrings, um feroz close-up em preto e branco de seu rosto, se tornaria uma das imagens da moda mais icônicas da década de 1960. O sucesso de Luna em Londres trouxe a ela um novo círculo de amigos famosos, como Mick Jagger, Michael Caine, Julie Christie, Mia Farrow e Yul Brynner entre eles. Ela namorou o ator Terence Stamp e Brian Jones, dos Rolling Stones. Todos que a conheciam pareciam ter uma história atraente.

Luna estrelou em vários filmes, vários produzidos por Andy Warhol, e apareceu em outras revistas populares da época, como as mencionadas Twen, Paris Match, Great Queen Britain, Playboy , bem como na edição francesa da Vogue. A revista TIME chegou a reconhecê-lo em 1966 em um artigo intitulado “O ano da Luna”. Em 1969, ele apareceu no filme de Federico Fellini, Fellini Satyricon, e em 1972 no Salomé, de Carmelo Bene .

Donyale Luna

Em 1975, Luna se casou com Luigi Cazzaniga, um fotógrafo italiano e morreu muito jovem, aos 32 anos, em 17 de maio de 1979, deixando-nos na alma a imagem de sua juventude e beleza.

Como Donyale Luna era uma imagem epifítica para as gerações futuras, uma figura mítica para mulheres como Joan Smalls, Jourdan Dunn, Malaika Firth, Anok Yai, Adut Akech, Mona Touraag ou Kinee Diouf. Ela foi a grande precursora da atual iconografia das revistas de moda como elementos de vanguarda para o grande público e foi uma revolução no universo da fotografia.

A própria Naomi Campbell reconheceu isso quando recebeu o CFDA Fashion Icon Award em 2019, sendo a primeira modelo negra a recebê-lo e expressou sua gratidão a todos os seus antecessores, incluindo Donyale Luna. Sua extraordinária beleza, suas poses inesquecíveis e, acima de tudo, seu estilo e personalidade marcaram uma mudança na história da moda.

Fonte: https://meikmag.com/en/donyale-luna-the-first-black-supermodel-in-history/

Donyale-Luna-director-Federico-Fellini-on-the-set-of-Fellini ...
Com Federico Fellini

Sobre Donyale Luna leia: https://www.vogue.co.uk/article/donyale-luna-model-vogue

Meet a traveller: Lola Akinmade Åkerström, travel writer and ...

Lola Akinmade Åkerström é uma fotógrafa e escritora de viagens nigeriana premiada, residente em Estocolmo, Suécia. Ela é a editora-chefe da Slow Travel Stockholm. 

Life is a Journey: Lola Akinmade Discusses Travel, Photography and ...

Site: https://www.lolaakinmade.com/about/

Em janeiro de 2016 a morte precoce de Phil Lynott, mítico líder da banda irlandesa Thin Lizzy, completa 30 anos. Ao longo destas três décadas, Lynott foi enfim reconhecido como um compositor e músico de primeira linha (mesmo fora da Irlanda), reconhecimento que tanto perseguiu em vida. Confira mais detalhes sobre o músico:

Um irlandês negro, com visual à la Jimi Hendrix, e chegado numa boa briga (na mesma medida em que era romântico e melancólico). Esta foi a “persona” que Phil Lynott desenvolveu nas noites de Dublin e que ajudaram a definir o som e a postura do Thin Lizzy.

A carência de informações sobre o pai de Lynott, que era negro, fez surgir o mito de que o roqueiro era filho de um brasileiro. O pai do músico era de fato da América do Sul, mais precisamente da Guiana Inglesa (hoje apenas Guiana).

Calejado por conta das muitas demonstrações de preconceito que sofreu ao longo da infância e adolescência (por conta da cor e por sua mãe não ter se casado com o pai), Phil Lynott logo desenvolveu duas paixões: pelo rock e pela literatura. Ele se tornou um baixista muito competente, além de vocalista e compositor.

O Thin Lizzy foi formado em 1969, com Lynott no posto de baixista e vocalista. O primeiro sucesso da banda viria apenas em 1972, com uma versão roqueira para a música folclórica “Whiskey In the Jar”.

O Thin Lizzy passou então a lançar álbuns e canções que se tornariam clássicos do hard rock. É o caso de “The Boys Are Back In Town” e “Jailbreak”. A banda se tornaria famosa também pelas guitarras, a cargo de músicos de renome, como Gary Moore.

O álbum ao vivo “Live And Dangerous”, de 1978, reúne os maiores sucessos da banda e é considerado por muitos críticos um dos maiores registros ao vivo do rock.

Apesar do reconhecimento de público e crítica, o Thin Lizzy não conseguia se descolar da imagem de banda alternativa, sempre longe da badalação e dos primeiros lugares das paradas. Phil Lynott mergulhou nas drogas e a banda acabou de forma melancólica, em 1983.

Lynott formou outra banda, “Grand Slam”, que também acabou naufragando por conta do seu vício em heroína. O mesmo ocorreu com sua tentativa de seguir em carreira solo. A gota d’água foi se ver fora do megafestival “Live Aid”, organizado por seu amigo, Bob Geldof. Ele teria ficado amargurado ao ver os conterrâneos do U2 brilharem no festival.

No Natal de 1985, Lynott teve um colapso após entregar os presentes a seus filhos. Nos primeiros dias de 1986, morreu por pneumonia e insuficiência cardíaca, fruto do consumo excessivo de drogas pesadas.

Hoje em dia, uma legião de fãs do mundo todo visita a estátua inaugurada em sua homenagem em Dublin. O reconhecimento veio de forma póstuma.

Fonte: https://www.vix.com/pt/bbr/musica/3016/phil-lynott-o-idolo-amargurado-do-rock-irlandes-em-10-atos

(Ilustração de Nicholas Konrad/Imagens: Getty Images)

Os Democratas estão ignorando os eleitores que poderiam decidir essa eleição

Bairros negros em estados decisivos detêm grande poder para remodelar a política. Aqui está um plano ambicioso para maximizar a participação desses votantes

Por Karthik Balasubramanian

Bairros negros em estados decisivos detêm grande poder para remodelar a política em novembro e além. Mas a fim de maximizar esse potencial, os progressistas precisam imaginar e investir em uma escala sem precedentes.

Eleitores negros têm apoiado consistentemente os candidatos Democratas com uma margem impressionante em relação aos Republicanos: cerca de 90% em comparação a 10%. Nenhum outro grupo demográfico chega perto desse nível de apoio – para ambos os partidos. Para cada 10 novos eleitores negros, 9 provavelmente votarão em um Democrata e 1 em um Republicano, rendendo oito votos líquidos em Democratas. Em contraste, 10 novos votos latinos (que votaram 70% em Democratas e 30% em Republicanos em 2018) renderiam 4 votos líquidos em Democratas. Para mulheres brancas, com ensino superior, o número é 2.

Dito de outro modo, um novo eleitor negro tem o mesmo efeito líquido que dois novos eleitores latinos ou quatro novas eleitoras brancas com ensino superior. Enquanto é verdade que existem mais pessoas elegíveis, porém não votantes de outros grupos demográficos importantes, existem mais votos líquidos em Democratas provenientes de novos eleitores negros por causa do imenso diferencial no apoio Democrata.

O que é um “novo eleitor negro”? Na eleição presidencial de 2016, estimadas 3.3 milhões de pessoas negras em seis estados decisivos não tinham registro, ou eram registradas, mas nunca votaram, ou não votaram em 2016, mesmo tendo votado antes. Nesses seis estados (Michigan, Pensilvânia, Wisconsin, Flórida, Carolina do Norte e Georgia) o número de pessoas negras elegíveis, porém não votantes, era ao menos 2.8 vezes a margem de perda de Hillary Clinton. Cinco desses estados também tiveram eleições para o Senado; os Democratas perderam em todos os cinco.

Na Pensilvânia, por exemplo, Clinton perdeu por cerca de 44.000 votos, enquanto Katie McGinty, a candidata Democrata ao Senado, perdeu por cerca de 87.000 votos. Mas estimadas 350.000 pessoas negras não votaram em todo o estado. Combine isso ao fato de que metade da população negra da Pensilvânia mora na Filadélfia, e fica evidente onde está o poder político, concentrado e inexplorado. Esse tipo de concentração geográfica não é única. Apenas 14 cidades representam mais da metade da população negra nesses seis estados cruciais. (Também existem grandes concentrações de não votantes negros em Jacksonville, Tampa e Orlando, Flórida; e em Fayetteville e Winston-Salem, Carolina do Norte).

E entre essas 14 cidades, setores de maioria negra (áreas normalmente menores do que distritos eleitoras) representam uma porcentagem amplamente desproporcional da população negra. Por exemplo, setores de maioria negra representam 80% da população negra do condado de Milwaukee, que por si só representa 70% da população negra de Wisconsin. A conclusão é evidente: residentes negros não votantes em locais decisivos têm o potencial de balançar as eleições, desde a presidência pra baixo, em 2020 e além. Os Republicanos sabem dessa dinâmica há anos; faz tempo que decidiram que se sairiam melhor contendo votos negros do que competindo por eles.

O argumento aqui não é que a eleição de Donald Trump em 2016 é culpa dos eleitores negros. Ninguém além dos 63 milhões de estadunidenses que votaram nele carrega a responsabilidade por isso. Na realidade, padrões de participação dos eleitores negros são bem similares aos dos eleitores brancos. Sim, é verdade que os eleitores negros foram sub-representados em 2016 e super-representados em 2012. E em eleições como a corrida de 2016 com margens estreitas, uma pequena mudança na participação pode importar.

Mas ao focar no pequeno diferencial de participação de 2012 a 2016, os progressistas perdem o prêmio maior: os mais de 30% de todos os eleitores que, consistentemente, não votam nas eleições presidenciais. Nas primárias e nas eleições municipais, o número é ainda maior. Esse é o resultado da falha dos progressistas em executar um plano ambicioso o bastante para mudar o status quo.

Como podemos aproveitar essa oportunidade? Os cientistas políticos Donald Green e Alan Gerber conduziram uma análise de centenas de experimentos de participação eleitoral que testaram métodos como placas de jardim, correspondências online, mensagens no celular e propagandas na TV. Nenhuma tática simples e barata melhorou a participação mais do que 3 pontos percentuais em média em participações eleitorais maiores. Estivemos respondendo à pergunta: “Podemos conseguir algo ao investir um pouco por eleitor alvo nas três semanas finais antes da eleição?” Mas nunca perguntamos: “Podemos conseguir muito mais ao investir com bastante antecedência do período eleitoral?”

Pesquisas mostram que a técnica de participação eleitoral mais eficiente é o contato olho no olho de uma fonte confiável como um membro familiar, amigo ou vizinho; isso é bem mais efetivo do que uma comunicação impessoal paga na TV, online ou no rádio. Mas a maioria dos não votantes ou eleitores não frequentes não recebem esse tipo de alcance porque as campanhas e grupos políticos independentes geralmente ignoram as pessoas com “taxas de participação” baixas. E já que esses pontos são desenvolvidos baseados em um histórico de votação, se torna menos provável ainda que um não votante seja contatado. Até pior, as pessoas que se mudaram recentemente ou não são registradas podem até não aparecer nos bancos de dados das campanhas. Esse problema é agudo em áreas com alto trânsito, como bairros urbanos de maioria negra.

Mas a oportunidade está justamente nessas pessoas. Para entender esse potencial, temos que eliminar presunções cínicas sobre o que é e não é possível. Aqui está uma proposta para desenvolver uma infraestrutura de organização robusta que pode construir relações reais com não votantes negros e maximizar a participação eleitoral.

Em todas as 14 cidades, dois residentes de cada micro-geografia seriam recrutados, treinados e receberiam uma quantia para formar um time em cada setor residencial. O primeiro passo do time seria se conectar a um membro de cada casa no setor – voltando em todas as portas o quanto for necessário até fazer contato. Essa interação introdutória seria uma conversa sem pressa sobre o time do setor e seus objetivos na construção de poder e na participação eleitoral, e reuniria os nomes de todas as pessoas elegíveis a votar na residência. Esse dado então seria conciliado com o arquivo do eleitor para categorizar cada residente negro elegível por status de registro e histórico eleitoral. Digamos que o time do setor tem 100 lares negros com 200 eleitores elegíveis. Quando o time agrupa boas informações, pode focar em uma angariação de votos profunda – tendo conversas significativas nas entradas das casas – somente com os não votantes ou eleitores não frequentes, talvez 80 pessoas no total. Nessa conversa ou nas futuras, os times do setor podem ajudar esses eleitores a se registrarem e se programarem para votar, talvez com uma ferramenta como a “Map the Vote” (Mapeie o Voto).

Esse não é o único modelo ou necessariamente o melhor, mas tipifica a grande elaboração necessária para corresponder ao tamanho da oportunidade. Existem muitas perguntas que precisam ser respondidas: Quantos times dos setores um organizador em período integral pode treinar e apoiar? Qual o tamanho da área que um time pode cobrir efetivamente? Com que frequência os times devem se encontrar? Deveriam focar em questões locais, apartidárias ou questões nacionais e partidárias? Não podemos responder definitivamente a essas perguntas esse ano (talvez os times devessem focar em 75 lares negros, ao invés de 100). Mas todo ano, temos duas chances para continuar refinando a infraestrutura. A primária municipal de 2021 e as eleições gerais permitem que os times evoluam com os aprendizados desse ano. Quando as eleições de 2022 para senadores e governadores estiverem com força total, os times já terão refinado suas estratégias ainda mais.

O modelo de time de bairro não é novo: as campanhas presidenciais de Barack Obama empoderaram dezenas de milhares de pessoas comuns a alcançar níveis extraordinários de contato eleitoral em seus próprios bairros. Mas até mesmo as campanhas políticas melhor preparadas são prejudicadas pela falta de tempo. Elas existem por apenas alguns meses a cada quatro anos, frequentemente construindo infraestrutura do zero e deixando pouco para trás para a próxima campanha.

Então quem deveria construir essa infraestrutura organizacional permanente? Idealmente, tanto os grupos políticos independentes quanto os partidos Democratas estaduais. Partidos estaduais têm muito a ganhar: eles poderiam mobilizar eleitores de maneira mais eficiente para assuntos prioritários ciclo após ciclo e poderiam ter uma maneira melhor de escutar os eleitores marginalizados e incorporar suas ideias e frustrações à plataforma do partido. Grupos independentes podem construir um poder comunitário fora de um partido político, o que poderia responsabilizar os representantes eleitos de uma maneira mais fácil.

Alguns grupos já estão fazendo isso. O grupo Líderes Negros se Organizando pelas Comunidades em Milwaukee, por exemplo, treina embaixadores comunitários para transformar os recursos dos seus bairros em poder coletivo. E o grupo Cor da Mudança procura fazer isso em escala nacional. Mas para abraçar essa oportunidade, tais grupos precisam de mais financiamento bem antes do período eleitoral e constantemente. Tanto a profundidade quanto a amplitude dos seus trabalhos são limitadas por investimentos insuficientes e imprevisíveis. Uma organização comunitária genuína leva meses e anos, não dias e semanas, uma verdade que normalmente não é levada em consideração nas comunidades.

Para ficar claro, o grande capital também existe no lado Democrata – só não é gasto eficientemente. A maioria do 1 bilhão de dólares destinado à candidatura de Clinton foi gasta em comunicação paga na TV e em anúncios digitais – não em grupos que poderiam facilitar o contato olho no olho com os vizinhos.

Um grande investimento em organização pode construir poder real em bairros tradicionalmente marginalizados e podem eleger políticos responsáveis, agora e pelos próximos anos. Feito do jeito certo, isso irá desenvolver líderes e poder político que podem ser usados para alcançar qualquer coisa que as pessoas queiram – essa é a verdadeira essência da democracia. Sabemos que bairros negros em seis estados decisivos podem nos levar aonde queremos chegar. Agora precisamos fazer acontecer.

*Publicado originalmente em ‘The New York Times‘ | Tradução de Isabela Palhares

Extraído de: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Os-Democratas-estao-ignorando-os-eleitores-que-poderiam-decidir-essa-eleicao/6/46605

Arsham 

por Daniel Arsham

The Eye, 

de Nathan Williams

MOAM 

de MENDO

 

 

Freunde-de-Freunden-Mendo-Colagem-1

Gunifort Uwambaga , natural de Ruanda, naturalizado holandês, é economista e sócio proprietário da mítica livraria e editora Mendo de Amsterdã, Holanda.

Resultado de imagem para mendo books

https://www.mendo.nl/

Imagem relacionada

Por  Dr Selwyn R. Cudjoe*

Parte da emoção de ser educador é o fato de ter falado em muitos lugares (como Canadá, Estados Unidos, América Central, América do Sul, Antilhas, Japão, África e Ilhas Fiji) sobre escravidão, educação e justiça social. Estou sempre animado para compartilhar meus pensamentos sobre essas questões e aprender o que os outros têm a dizer sobre suas condições.

No último sábado (2 de novembro), participei de uma conferência na Universidade de Fordham que comemorou o 50º aniversário da fundação do Departamento de Estudos Africanos. Eu estava lá no começo. Fiz parte do “Painel dos Fundadores”. Falei dos desafios que enfrentamos naqueles tempos ao formarmos um departamento que estudava a história, a literatura, as ciências políticas e sociais da África e de sua diáspora.

O fato de o departamento ter sobrevivido por 50 anos em meio a um período tempestuoso e tempestuoso no ensino superior americano é um testemunho de todos nós que avançamos, quase às cegas, nas décadas de 1960 e 1970. Era um território desconhecido para todos nós.

Irma Watkins-Owen, uma das pioneiras do Departamento Afro-Americano no Lincoln Center Campus, lembrou-nos que “havia mais de 600 departamentos de Estudos Afro-Americanos em 2013 e o número caiu para 361 programas em todo o país. Ela pediu ‘cautela, vigilância e ativismo’. ”(Ver Fordham News , 5 de novembro de 2019). Fizemos bem nessas circunstâncias.

Na quinta-feira, dei outra palestra no Providence College, Rhode Island, sob a rubrica “Escravidão, Educação e Justiça Social”. Falei sobre meu livro mais recente, O Mestre Escravo de Trinidad e como a vida de William Hardin Burnley iluminou o tópico à mão.

Embora Burnley fosse um mestre tirânico cruel com as pessoas escravizadas, ele era uma importante figura transatlântica do século XIX. Sua irmã, Maria, casou-se com Joseph Hume, um dos membros mais poderosos do Parlamento britânico. Essa associação deu a Burnley acesso imediato ao escalão superior do Escritório Colonial.

Desde que eu estava falando em uma faculdade na costa leste dos Estados Unidos, apontei que Andrew Hanswell Green, “o pai da Grande Nova York”, era superintendente das propriedades açucareiras de Burnley em Orange Grove por um ano. Ele morava “em um galpão que ficava a dois metros por dois metros da casa principal. O barraco não tinha ‘teto’, apenas telhas no beiral, expondo Green ao clima ”(Michael Rubbinaccio, o pai de Nova York é assassinado ). Em 1898, Green reuniu os bairros de Nova York em um único município.

Um professor de história não podia acreditar no que estava ouvindo. Ele perguntou: “Você quer dizer que o pai fundador da Grande Nova York era um superintendente que morava em uma plantação de Trinidad antes de se tornar um membro tão proeminente da cidade de Nova York?”

Expliquei que nos séculos 18 e 19 “o açúcar era considerado o ‘ouro branco’ nas arenas comerciais do mundo, mas era acumulado pelo flagelo do trabalho escravo do ‘ouro preto’” (Micki Pistorius, “Açúcar e escravos . ”)

Acrescentei que em 1770 “foram as riquezas acumuladas do comércio das Índias Ocidentais que mais do que qualquer outra coisa subjacente à prosperidade e civilização da Nova Inglaterra e das colônias do Oriente” (Citado em Eric Williams, Capitalism and Slavery ).

Na sexta-feira, o New York Times publicou um artigo em que Gaston Browne, primeiro-ministro de Antígua, pediu à Universidade de Harvard que pagasse reparações à ilha. Ele contou que a Harvard Law School foi fundada e financiada por Isaac Royal Jr., proprietário de escravos de Antígua (8 de novembro).

Quatro anos antes, os professores Daniel Coquillette e Bruce Kimball, das Universidades de Harvard e Ohio, respectivamente, haviam dado ao Browne a munição de que precisava para processar seu caso. Eles relataram: “Royall dificilmente foi o fundador ideal de uma escola dedicada ao estudo do direito e da justiça. Ele era proprietário de escravos cuja fortuna se baseava em grande parte nas plantações cruéis de cana-de-açúcar de Antígua. Ele e o pai sobreviveram a uma grande revolta de escravos, que terminou com escravos queimados na fogueira, quebrados no volante e consumidos vivos ”( No campo de batalha do mérito ).

A revolta de escravos, à qual Royall sobreviveu, foi precedida pela “ dança Ikem , realizada em plena luz do dia pelo líder dos escravos, ‘King’ Court ”, a principal Pessoa nesse caso. Este era “um ritual real Akan destinado a selar o apoio dos compatriotas” … Os espectadores brancos não tinham idéia do que significava a dança, “pensando que era um entretenimento criado por e para escravos”. Houve também juramentos, administrados com bebidas sagradas preparadas por um ‘homem Obeah’, uma figura do tipo xamã Akan, que apoiou a gravidade espiritual da cerimônia. ‘”

Esta poderia ter sido uma cena tirada de Trinidad do século XIX. A experiência me ensinou que estudar a vida dos donos de escravos pode nos ensinar muito sobre a resposta e a luta pelo bem comum, e o quanto os negros da região têm em comum.

Nós fornecemos a riqueza que construiu o novo mundo. Embora não o conheçamos, precisamos cimentar o trabalho intelectual e espiritual que nossos pais e mães fizeram para nos manter psiquicamente centrados e vivos.

Há cinquenta anos, parti em peregrinação para conhecer e entender meu povo. É uma tarefa com a qual todos nós devemos nos comprometer. Não sei até agora que instituímos o ensino da história do Caribe em nossas escolas secundárias, mas deve ser a base sobre a qual nos preparamos para as tarefas que temos pela frente.

Estudar o passado nos ajuda a entender o futuro. É a fonte da qual todas as coisas boas crescem.

*Dr Selwyn R. Cudjoe  é um historiador, ensaísta e editor nascido em Trinidad e Tobago. É professor de estudos africanos no Wellesley College, em Massachusetts. 

Fonte: http://www.trinidadandtobagonews.com/blog/?p=11874

Cidade na Argentina pode ser a primeira do país a eleger um prefeito negro.

Por Murilo Matias

Na esteira do resultado da eleição nacional, a cidade de Salta pode marcar a história da Argentina caso o projeto popular apresentado por David Leiva reverta a tendência das pesquisas e o cantor e vereador torne-se o primeiro afroargentino eleito para o cargo de prefeito.

O candidato da Frente de Todos, que venceu as internas contra outros três postulantes, aposta numa campanha centrada nas periferias para vencer a tradicional direita local.

“Vim dos setores populares, represento muitas vozes e desde esse lugar entendo saber quais são as necessidades e o plano de governo para se ter uma melhor cidade para a coletividades dos bairros”, diz.

“A discriminação está marcada culturalmente, pessoas humildes são estigmatizadas e consideradas incapazes de ocupar espaços de poder devido ao racial, ao socioeconômico, às diversidades. Temos de transformar essa realidade do racismo que nos machuca, gera ressentimento e nos empobrece como sociedades”.

As desigualdades são sentidas especialmente nos bairros periféricos, onde a ausência do estado são evidentes nas carências de saneamento e pavimentação, problema que afeta as famílias, as quais muitas vezes perdem seus escassos bens em função das recorrentes inundações – a cidade está rodeada por rios.

Outro desafio urgente é o combate à desnutrição e à fome. A atual gestão a partir do Ministério de Assuntos Indígenas e Desenvolvimento Social de la Provincia na esfera estadual desenvolve desde setembro o Plano Alimentar Salteno que consiste na  abertura de 250 escolas públicas e centros de infância aos fins de semana, afora o financiamento para a compra de itens básicos a mais de cinco mil idosos.

Por outro lado, na praça 9 de Julho, região de afluência de turistas, uma refeição simples chega a custar 50 reais, ao passo que nas proximidades da rodoviária é possível se alimentar por 5 reais.

A disparidade denota a complexa formação urbana da cidade de mais de 400 mil habitantes, incluindo numerosas comunidades indígenas originárias e outras que migraram da Bolívia.

A disputa entre classes está demarcada também entre os dois principais concorrentes, Leiva e Bettina Romero, filha e neta de governadores da província.

“Não sei se será uma tendência definitiva entre o eleitorado, mas pode-se dizer que Bettina atrai o público das classes médias às altas enquanto Leiva provém dos bairros humildes e conta com esse voto para ampliar suas chances”, avalia a jornalista Cecilia Agüero, do diário digital InformateSalta.

Nas primárias o grupo conservador somou 145 mil votos somando os candidatos derrotados ao passo que a Frente de Todos alcançou 82 mil adesões, números que sugerem o favoritismo de Bettina, que pode tornar-se a primeira prefeita da cidade.

Apesar da crise nacional, em relação à disputa presidencial Salta foi uma das raras cidades em que Macri obteve vantagem sobre  Alberto Fernandez e Crisitina Kircher, mas a vitória do campo peronista e o fato de Bettina ter passado boa parte de sua vida fora do município podem ser fatores que emparelhem a eleição deste domingo.

Cor Tropical

“Dói saber que a coisa que eu queria quando criança era pele de ilusão e que o anjo anda com os pés do cansaço. Isso nos leva à vida para lutar”.

A música Zamba del Angel cantada por Leiva em seu ritmo tropical conta um pouco da trajetória pessoal do candidato, mas também da disposição coletiva de um povo para os enfrentamentos sociais, muitos deles relacionados ao racismo.

Os praticamente inexistentes registros de políticos negros denota além da exclusão, as consequências da colonização e da construção da identidade nacional baseada quase que unicamente em figuras brancas e masculinas.

“É difícil acessar informações seguras porque a historiografia liberal não enfatizou esse assunto. Há alguns anos começou a se espalhar que o sargento Juan Bautista Cabral, um herói argentino, era afro-descendente. Durante o século XX tampouco há dados confiáveis”, comenta o cientista político Nicolás Casadidio.

Outras lideranças citadas são de Tomas Platero e o Doutor Ramon Castillo.

A fim de revisar o passado e estabelecer uma nova relação em termos de inclusão foi criado o  Instituto Nacional de Assuntos Afro-argentinos, Afrodescendentes e Africanos (Inafro), mas a estrutura racial discriminatória ante afro e indígenas segue vigente.

No ultimo censo realizado em 2010, 150 mil pessoas declararam-se  como afro, dentre mais de 30 milhões de habitantes.

“Sempre perguntam aos afroargentinos se eles são do Brasil, da Colômbia, menos da Argentina, o que os irrita muito. Nos últimos anos há muitos casos de racismo contra a comunidade senegalesa, vários trabalham como vendedores nas ruas e são mal tratados pela polícia em diversas situações”, observa Sergina Boa Morte, brasileira que vive em Buenos Aires desde 1971 e atua em diferentes projetos em relação ao tema.

O assassinato em 2016 de Massar Ba, militante senegalês, ainda em investigação, revela a violência a que estão expostos os negros na capital e em todo o território.

Em Salta a chance do marco de referência do que pode ser a eleição do primeiro prefeito negro do país depende exatamente da união das classes populares e minorias tradicionalmente esquecidas pelas administrações públicas.

Independentemente do resultado de domingo, a campanha aguerrida de Leiva e o alcance de sua voz projetam a esquerda Argentina em direção à pluralidade de suas lideranças, pelo menos ao norte da nação.

Fonte: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/cidade-na-argentina-pode-ser-a-primeira-do-pais-a-eleger-um-prefeito-negro-por-murilo-matias/

Sobre David Leiva leia mais em: http://www.cuarto.com.ar/david-leiva-infancia-castanares-cumbia-politica-y-el-sueno-de-la-intendencia-de-salta/

Angela Davis, em Madri.

Diante de meia centena de jornalistas e câmeras, a lendária ativista e acadêmica Angela Davis (Birmingham, Alabama, 1944) conversou com jornalistas na quarta-feira em Madri. Vestida de preto, com um cachecol amarelo, sua icônica cabeleira afro —menos desafiadora do que nos anos setenta— estava mais próxima de uma meia cabeleira crespa, hoje branca.

A clareza e a força de seu discurso não perderam o brio, porventura assumiram uma nova urgência diante do ressurgimento do nacionalismo supremacista nos Estados Unidos. “É importante não reagir a cada declaração que Trump faz para mobilizar suas bases e não deixá-lo manobrar a conversa”, disse. “A resposta a Trump vem das mulheres, desde sua posse a mobilização contra ele foi organizada por elas. No passado, a categoria mulher significava mulher branca, e isto foi contestado. A resposta feminista ao racismo e do colonialismo é a resposta”. Autora de A Liberdade É uma Luta Constante, e Autobiografia, tem uma nova conferência intitulada O Feminismo Será Antirracista ou Não Será, alinhada com essa conexão entre as injustiças raciais, de gênero e econômicas que Davis vem estudando e denunciando há décadas.

Passaram-se 50 anos desde que Davis se juntou aos Panteras Negras em 1968. No ano seguinte, o então governador da Califórnia, Ronald Reagan, forçou sua expulsão do corpo docente da Universidade da Califórnia antes que desse a primeira aula, e em 1970 Hoover a colocou na lista das 10 pessoas mais procuradas pelo FBI. Foi acusada de conspiração depois do ataque a um tribunal da Califórnia feito pelo adolescente Jonathan Jackson com uma arma registrada em nome de Davis. Ela passou quase três meses escondida e depois cumpriu 16 anos de prisão antes de ser absolvida de todas as acusações em um julgamento histórico.

Membro do Partido Comunista até o início dos anos noventa, Davis sempre se esquivou do protagonismo excessivo e tentou colocar a ênfase no coletivo mais do que no individual. Tornar o feminismo um movimento integrador foi uma de suas grandes lutas.

É possível pensar que a histórica Davis tem algo de oráculo ou de termômetro da esquerda social a julgar pelo amplo leque de perguntas que respondeu ontem. Dalegalização da maconha no Canadá (“O consumo de drogas deveria ser descriminalizado, nos EUA a chamada guerra às drogas foi uma guerra contra a população negra”) até a abolição do sistema penitenciário (“Exigiria uma sociedade muito diferente, mas estamos em um ponto em que muitos detentos estão na prisão por serem imigrantes ilegais ou por falta de recursos e de educação”), passando pela vitória de Trump (“A maioria votou contra, mas ganhou graças ao sistema de colégios eleitorais, que favorece a representação de Estados com pouca população branca e é uma herança direta da escravidão”) ou a relação entre feminismo e animalismo (“Deixei de comer carne na prisão não como um gesto político, mas porque a que eles nos davam estava podre, mas acredito que a política dos alimentos é importante”).

Depois de 50 anos de luta, a situação atual a desanima? “Não. O racismo hoje volta a ser mais violento e explícito, mas também existe um forte movimento à esquerda e uma maior consciência. Movimentos como #MeToo e Black Lives Matter são resultado do trabalho de várias gerações. A percepção da injustiça e da desigualdade é mais profunda”, explicou sentada em um sofá, em uma breve entrevista depois da coletiva de imprensa.

Discípula de Herbert Marcuse, pensador da Escola de Frankfurt, diz que a melhor lição que aprendeu com ele foi a responsabilidade que os filósofos têm de mudar o mundo, de levar a teoria crítica a um quadro mais amplo. E sobre a política espanhola, diz que aprendeu que é “complexa”. “Os imigrantes que estão em centros de detenção também são presos políticos”.

Publicado em 29 OUT 2018 – https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/25/cultura/1540468443_420474.html

Freunde-von-Freunden-Nataal-75A8610-1

Nataal